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domingo, setembro 17, 2017

confesso


confesso-me cúmplice do sol/ das múltiplas pétalas em cor/ emanando ao longo da seara/ doirada ou da de ondas de sal/. confesso ser cúmplice e aliada/ da sua irrigante companhia/ da sua estremosa presença/ tão cálida porque distante./ a Vida é mesmo esse rasgo/ perene e insistente, pois raro/ de onde brotam rugas e carícias/ que hoje endereço ao teu curto estar./ confesso-me cúmplice do sol:/ daí ter de reservar as escuras/ passagens do nocturno tempo / para reinar ou reger as sombras/ nesta tarefa lunar de amar/ e o rei governar o fogo dos dias./ confesso-me cúmplice do Sol / meu Amor de mim, a sua Lua fugitiva. .

confesso-me aliada da vida
mesmo nas horas de todas as redenções:
a coragem dos ponteiros do relógio é magna
e, subtil, cativa corações magoados
ou adiados por entre ocos espelhismos.
confesso ser-me difícil acreditar
em gestos pouco secundados pelo olhar
pela pausa intensa e plena de sossego
- tanto sossego quanto o que um vulcão menino
possa albergar no topo da rendição.
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amo todos os vulcões, aliás,
como a prosa que laboro repetidamente avisa.
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confesso-me entalhada na vida
duradoira, persistente e tenaz.
não tenho sílabas para falas ardilosas
nem pontuação alguma para mentiras.
lá vai o tempo de apenas o verbo exacto
- bem sei. dai emergem as minhas rugas
mas este é o caminho possível
cheio de pontes herdeiras de pedras duras.
farto de gestos ácidos e enxofrados,
roto pelo avesso de traição e injúria,
estafado do encómio acrobático,
prenhe de náuseas rombos e lascas
e unhadas
e curvas rasas de tanta incompreensão.
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confesso-me cúmplice do sol.
por isso alago a escuridão de luares
e a claridade regressa a envolver-me
de lugares de mãos e simples amores.
-
maria toscano.
Coimbra. 13 e 18 Junho / 2017

quinta-feira, janeiro 01, 2015

dobar a vida

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1.


para dobar a vida há que partir de um tal vazio
o vácuo. o onde nada ocupe ou pouse.
o arco imaginário entre as duas palmas das mãos
erguidas ao alto na esperança da meada.

para dobar a vida há que alcançar o vazio
há que tecer o nada total, o vácuo de linhas
o vão entre o que é, o que não é e será
o vão entre a vibração anterior e aquela a eleger
a escolher — fibra e cor da vida por fazer.

para dobar a vida há que alcançar tudo
o que o vazio abrange até ao horizonte sem fim.
esvaziar. depurar. amansar. saborear
os ácidos acres  e doces. sentir o rigor
o afago o deslaço o adeus a queda.
assumir o total vácuo onde há nada
tecer as linhas até entretecer o nada
— estes o preparativos dos lavores da vida.
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Figueira da Foz. Café ‘Praça 18’. 1 Dez. / 2014.

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2.

para dobar a vida há que abrir todas as coisas
até ao ponto onde se alojam fel sangue e mel
onde se afagam versos e ausências de gestos
onde afogam gestos e bravura de versos
onde se abrigam braços no reverso de abraços.
há que abrir ao meio todos os meios
desdobrar conteúdos opacos inacessíveis
ou distantes da batida do coração.

para dobar a vida há que aproximar
os arcos do triunfo e da consolação.
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Figueira da Foz. Casa Havanesa. 13 Dez. / 2014.

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3.

dobar a vida, aprender
a ser estuário, horizonte.

dobar a vida
na meada enleada de fios
aprender que a trama é infinita
na casa esférica tecida de terra e mar.
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Figueira da Foz. ‘Tapas Bar’. 23 Nov. / 2014. // Águeda. ‘Café. Restaurante Gambrinos’. 30 Dez. / 2014.

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4.

dobar a vida é mester sinuoso


ofício ténue de alisar rugas
alisar linhas de meadas rosto mãos
domar-lhes curvaturas sinais
borbotos, pontas desfiadas, nós.
dobar a vida, sendo acção de degelo,
exige à pele resistência ou amor ao frio
habituação a esses cristais cortantes
coados, nas minúsculas gotas, pelo curto sol.
dobar a vida, sendo acção de degelo, exige
mais do que habituação: dedicação
à cultura e modo de vida do fri

só pode desfazer nós quem os saiba dar.

a todo o trabalho de desfazer compete o ofício prévio da laboração
a ter de novo lugar após a tarefa intermediária.

é que a acção cumpre-se, sempre, em 3 gestos:
desde a 1.ª criação
impulsiva,
à criação gerada
por desbaste, degelo ou pelo dobar.

dobar a vida é mester sinuoso.
ofício ténue de moveres circulares
amplificando o ponto inicial
com voltas de fios sobrepostos
— moveres a que correspondem outros
gestos circulares e paralelos
das mãos sustendo a meada-obra
a meada-criação e obra a unir
/a margem de erva, pastos, currais, de guizos de orientação, cães de guarda
do cajado tão fundo como a memória do pastor enraizado no monte
/à outra margem de luvas, camisolas
cachecóis, gorros xailes e mantinhas
/as duas margens por entre as quais corre a verdade da vida.

dobar a vida é aliar a meada
— mediação entre pastagem e aconchego —
ao novelo de tecer fibra modelo e cor.

dobar a vida é o gesto segundo
o intermédio movimento
entre meada e malha ou fio tecido.

dobar a vida
aliar meada a novelo
é habitar o vazio, o nada, o vácuo de linhas,
habitar a meada para devir novelo
para devir a promessa de teia e trama infinitas
— a casa redonda tecida por mãos aos pares
ou o aconchego,
quando o frio chega à casa de terra e mar.
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Águeda. ‘Café. Restaurante Gambrinos’. 30 Dez. / 2014.

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5.

dobar a vida é uma custosa perícia
alcançada por mãos laboriosas suaves
mãos calosas ou rugosas. firmes
mãos laboriosas ousadas insatisfeitas,
mãos esmeradas com terraços e precipícios
e corrimões escadas passeios e passadeiras
de peões.
mãos de peões e ruas pedonais.
mãos de fechaduras portas e ombreiras seguras.
mãos de embalos e colos inesperados
a meio de um filme, no restaurante, no shopping center.
mãos de resguardo e da pausa acolhida em silêncio
como paciente e silenciosa é a perícia de dobar a vida.
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Figueira da Foz. ‘Nau. Pastelaria e Restaurante’. 31 Jan. / 2015.

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6.







sexta-feira, setembro 05, 2014

terça-feira, agosto 12, 2014

águas, mas doces





doce movimento aos borbotões. incontido.


flecha imprevista subindo na vertical
imune a expectativas e morais.


gotas doces encadeadas e coesas,/ solidárias na ascensão pagã.


doces bagas de múltiplas terras, raízes.

gretas transparentes no sangue fervente.

golpes certeiros no orgulho férreo e surdo.

polegadas íntimas. / impressão corporal
na memória dos sentidos e na memória dos fundos
( esse arco estirado ao suceder dos passos/ omissões e, sobretudo, medos.)

doces gotas bagas gretas golpes e polegadas.

assim as águas derramadas pela alegria.
emoção notória. resumidamente: lágrimas.
Mas doces.
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© maria toscano. inédito.
Coimbra. Restaurante ‘Jardim da Manga’. 10-11 Agosto / 2014.
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terça-feira, julho 29, 2014

as torradas


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enquanto não chegas viro a fatia do pão saloio já com dois dias
e espero pela função escorreita da moderna torradeira eléctrica.
se soubesse que aí estavas por perto até punha já as tuas torradas, duas,
a fazer — não muito queimadas nem muito alouradas: bem torradas, portanto.
sim, é verdade: não são horas de fazer torradas!
o cheiro enfia-se pela chaminé e vai parar ao andar de cima,
o movimento na casa, com mudança de divisão e de luzes, perturba
o ecológico e quântico sono das fiéis cadelas
e ainda lhes provoca gula, pecado sempre associado nos entes caninos
à representação manipuladora da fome
sob toda a forma de trejeitos dos olhos dos beiços das orelhas
e, mesmo, de um chiar pseudo-uivante, acertado
ao gradual deslizar na redução da distância face ao dono — no caso, à dona —
e da sempre, tão proibida quão inesperada, pata pousada no colo,
ameaça certeira do salto em duas patas, caso a intervenção da autoridade
se adie ou negligencie.
mas hoje está tudo calmo, por aqui: não te preocupes que os vizinhos
não serão despertados a meio da madrugada com ladradelas
nem uivos manhosos de cadelas mimadas como se prezam de ser os animais urbanos.
tudo isto enquanto fazia as torradas.
sim, fazia: já terminei de virar as duas fatias do pão saloio com dois dias de dureza
e a moderna torradeira eléctrica portou-se à altura.
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o que não se inventa quando o virar das páginas de um livro já não cala a saudade:
virar torradas? francamente!
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© maria toscano. [inédito]
Coimbra. (C)Asa Verde. 28 Julho / 2014.
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já de abalada? ande cá! corra a cuartina de riscas e sente-se aí no mocho (no canapé? é melhor nã, nã seja que as preguetas lhe dêem cabo da roupa).
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faz calôrê nã? é tempo dele! no cântaro hai água fresquinha! e se quiser entalar alguma coisaaaa... a asada das azeitonas está chêinha, no cesto hai bobinha e papo-secos (com essa chôriça... ou com o quêjo de cabra, iiiisso!, nessa seladêra de esmalte!);
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chegue-se à mesa! - cuidado não lhe rebole a melancia para cima dos dedos do péi... assim... - entã nã se está melhórê?
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nã, nã, agora nã vai máinada! estou a guardar-me pra logo... ora na houvera de sêri! ah! já lhe dê o chêro! pois é: alhos e coentros e um nadica de vinagrê... vem aí do alguidar de barro... sim, sã nas carnes prá cêa.
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como nã sê o que o trouxe cá, forastêro, ‘stêja nesta sulmouradia como à da sua: pode ir mirando os links ("do monte"; "olivais..."; "deste planAlto..."; estas é que são...") os montes de que gostamos; pode ir vendo os posts por data ou esprêtando as nossas etiquêtas
("portados"); ou pode ir passando os olhos só pelos mais recentes.
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ah! repare lá que por estes lados nã temos o hábito de editarê todos os dias - não é um blogue-diário, 'tá a vêri?; pensámo-lo antes como sendo uma espécie de blogue-testemunho das vozes do Sul (o de cá e os Suis todos); mas temos ainda muito qu'arengar... vamos lá chegando, n'éi? devagarê, que o sol quêma!
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